O aluno Sr. José

Nos vários anos de ensino que já levo, tenho conhecido muitos alunos, nos mais variados contextos. Esta pluralidade de pessoas com quem me tenho cruzado e com quem tenho tido o prazer de trabalhar permite-me conhecer diferentes realidades e olhar o mundo pelos olhos de muita gente.

No passado ano letivo (2012/13) para além dos adolescentes com quem é hábito trabalhar todos os anos, tive uma turma de adultos no ensino noturno. Não foi a primeira vez que trabalhei com adultos no ensino público e esta turma poderia ser apenas mais uma turma não fosse a particularidade interessante de um dos seus alunos. O Sr. José!

O Sr. José tem 81 anos de idade, e é por isso o aluno mais "experiente" com quem alguma vez trabalhei. Nascido em Angola antes da I Grande Guerra Mundial, numa altura em que ainda não havia televisão em Angola e o telefone era uma miragem para a maior parte das pessoas. O Sr. José agora no Séc. XXI quer aprender a trabalhar com os computadores e ir à Internet. Tivessem muitos jovens a vontade de aprender que ele demonstra e os indicadores de sucesso do nosso sistema educativo apresentariam dados muito diferentes dos atuais.
O Sr. José veio para a escola segundo ele, não porque precise dos conhecimentos para o seu "trabalho", mas porque,  "estava a perder a mente e aqui pode aprender mais coisas". A forma como encara o trabalho em aula é digna de ser apreciada e é uma inspiração para todos os colegas.

Um dos trabalhos que teve de realizar para demonstrar as competências exigidas às disciplinas foi elaborar a sua "história da minha infância". O resultado desta tarefa tem tanto de singelo como de sumptuoso. E não podia deixar de assim ser já que aliou um processo construtivo deveras fascinante a uma história agradável e muito interessante.
Partilho aqui alguns trechos dessa história, com a devida autorização do autor, que nos fazem reflectir sobre forma como concebemos a vida e o ensino em particular.

A infância no mato...


"Até aos 12 anos vivi no mato, onde o meu pai tinha os negócios: uma loja de comércio com os nativos, agricultura e pecuária. Ali não havia recursos nenhuns e a vila mais próxima era a 10 quilómetros, onde havia quase de tudo. Por isso não aprendi a ler nem escrever."
A vida familiar...

"Além de ter convivido com madrastas de raça negra, que na altura, nada sabiam para me poderem transmitir, meu pai e uma irmã, esta, apenas com a 3º classe, tentaram ensinar-me em casa, mas eu não aprendia nada, dado o grau de atraso, do ambiente em que vivia, pois em casa nem sequer havia um rádio para ouvir música ou o noticiário e, sem outros incentivos, era viver num mundo desconhecido."


As brincadeiras...
"Como não era todos os dias que me chamavam para pegar nos livros a fim de estudar, eu ia ter com os meus amigos que eram nativos e como não tínhamos brinquedos, as nossas brincadeiras consistiam em fazermos corridas, brincar com arcos e quando chovia cortávamos troncos de bananeira e íamos para sítios altos e escorregávamos por aí abaixo e fazíamos moinhos com pauzinhos e púnhamos nos regatos, enquanto durasse a água. Assim passávamos a vida, felizes, na ignorância e sem disciplina."
A escola na vila...

"Aí tive muita dificuldade de adaptação, pois os outros miúdos troçavam de mim, mas pouco a pouco foi superando. O professor mandava os outros alunos ensinar-me e eu, como não aprendia, batiam-me. (...) tive de aprender à força. Finalmente não era só eu. Também lá encontrei alunos que eram mais velhos do que eu e repetentes da primeira classe. Graças a Deus, da escola nunca fugi e depois de aprender a ler e escrever, passei a ter gosto de estudar. Fui-me integrando nas brincadeiras com os outros alunos, jogávamos à bola de meia e já me sentia à vontade."
(...)
 "A quarta classe foi a que gostei mais e como sabia já ler e escrever bem, gostava muito da história de Portugal e de todas as provinciais ultramarinas e também de geografia ciências naturais do corpo humano e de geometria. Nesta classe, quando acabavam as aulas, ficava um grupo de alunos e alunas de pais ricos e daqueles que podiam pagar a aprender a admissão aos liceus. Os outros iam embora mas eu mesmo não podendo pagar deixava-me ficar, punha-me atrás das carteiras encobrindo-me com receio do professor me ralhar e correr comigo, porque era visto como muito mau. Ele apercebeu-se disso, mas nunca me ralhou nem correu comigo. Eu estava sempre com atenção aos seus ensinamentos, chegando mesmo ao ponto de ele fazer uma pergunta aos seus leccionados, começar numa ponta e acabar na outra sem que estes lhe respondessem. Chamou-me e disse-lhes: “querem ver que um aluno da quarta classe me vai responder à pergunta?” Por sorte, e grassas a Deus, respondi correctamente. O professor mandou-me então dar doze palmatoadas a cada um tendo-me calhado aquele que me tinha dado socos na cabeça."
Um relato delicioso na primeira pessoa que dispensa comentários. 

Foram várias as histórias contadas pelo Sr. José. Chegado o final do ano, obteve o seu diploma do 6º ano de escolaridade tendo revelado as competências exigidas para o mesmo. No verão que se seguiu cumpriu um sonho antigo, o de voltar a Angola, a sua terra natal, mas apenas para passar férias, já que é lá que ainda tem parte da família. Agora de volta a Portugal foi convidado pela escola para ingressar no próximo ciclo, dando continuidade aos estudos e terminar o 9º ano. Disse-nos que agora já tem pouca vontade. Talvez os ares de África o tenham conformado com a realização do seu sonho. O que mais o prendia à escola eram as aulas de Inglês e de Informática que era o que ele mais gostava de aprender. 
O que ele não sabe é que no fim do dia, aquilo que aprendeu comigo foi uma sombra quando comparado com o que me ensinou a mim. Mas a vida é mesmo assim... Vamos nos ensinando uns aos outros.

Um grande e saudoso abraço ao Sr. José.

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